quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

Obrigado, prima

Enquanto Lara não tem novidades, e enquanto não encontro tempo para falar sobre filmagens de Habeas Corpus, voltamos no tempo.

Primeiro, adianto que não sou escritor. Isso esclarecido, não dá pra ignorar que Lara nasceu de um conto, mais especificamente da ideia de Arthur (Freitas) adaptar um rabisco que tinha enviado a ele e a um  punhado de amigos.

Embora o filme tenha ficado bem diferente do conto e do que ele imaginava, Lara permanece o único curta que dirigi em que houve uma base escrita anterior ao roteiro.

E pra não dizer que ele foi só mais um texto de diário que ninguém além do autor leu, aí vai. Ele faz parte de um personagem com pseudônimo, mas não me dou bem com batizados e, nesse caso, assino com um temporário sem sobrenome. Espero que suportem até o fim.

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Obrigado, prima

Tô na fila da padaria quando alguém me chama. Definitivamente, eu não quero saber quem é. Os mal humorados deveriam ter um botão para apertar e acender a luz de alerta. Como a marcha à ré, só que com a função do sinal vermelho. Casamentos, flertes, amizades, namoros, casos, inimizades, tudo seria mais fácil se envolvidos identificassem o momento de manter distância. E eu não precisaria responder ninguém uma hora dessas. Mas tem horas que o semáforo tá do lado da gente.

Sua maquiagem minimalista realça o máximo dos olhos escuros. Na altura do ombro, cabelo é liso e contido. Cintura fina acusa sangue latino. Um cruzamento romantizado entre o que visualizo do ideal eslavo e da sul-americanidade indígena. Único porém, à primeira vista, é o péssimo hábito europeu de ser grande. Mas é seu único defeito, o que o torna até bem-vindo. O maior problema da perfeição é a falta de charme. Disso ela não sofre.

- Digaí, meu velho. Já se viu na revista hoje? – diz ele.
Não importa quem é.
- E eu saí na revista hoje?
- Outra vez.
- Mas eu não matei ninguém.
Como quase sempre acontece quando vontade de agradar é mais forte que instinto espirituoso, resposta foi uma porcaria. Mas ele riu, ela também. Ele saiu, ela ficou.
- Pensei que você estivesse com ele.
Ela faz que não com a cabeça. Disfarço flerte com gentileza e dou a vez.
- Obrigada – disse.
- Chile?
- Brasil.
- Você não é de Salvador.
- Sou, sim.
Silenciamos, fila anda, ela é a próxima.
- Argentina?, desconfiei.
- Eu sou de Salvador. Minha mãe que é argentina. E meu pai húngaro.
Acuso surpresa.
- Todo mundo faz a mesma cara.
- Argentina e Hungria não são, digamos, Barra e Ondina, né?!
- Nem Rio e São Paulo.
Chega a vez dela. Estendo minha mão, formalidade é bem-vinda.
- Felícia.
- O nome é menos inusitado.
- O sobrenome é Korontai.
- Agora você ganhou.
Ela recebe o troco e parte.
- Ah, sou Miguel.
- Eu sei quem você é – e se despede.

Com seu aceno vou para casa, onde vasculho redes sociais, encontro-a, mas me contenho. Obviamente, ela está acostumada a afoitos “oi, quero te comer, sua exótica”. A menos que esteja com libido extrema, o que eu não tenho como saber, abordagens ordinárias não vão funcionar. Só cinco dias depois, após cuidar bem dos olhos com visitas diárias à sua versão virtual, falo a verdade. “Procuro um contato profissional e olhe quem encontro! Ou não foi você aquele dia na padaria?”
Conversamos alguns dias pela Internet, sem atropelar nenhuma etapa. Início é com assuntos amenos, para evitar ou diminuir hipotético índice de rejeição. Em dia bacana, sexo vem à tona e fica. Eu e ela já temos um misto de afinidade, admiração e curiosidade pelo outro; ou pelo menos enganamos com impressão de, o que dá no mesmo. Marcamos de sair. De quando chutei Chile e Argentina, já se passaram dez dias. Reencontro vai ser amanhã, um sábado à noite, hora do sexo catarse. Mas só na teoria.
Ísis
Ela nasceu em Itabaiana e vive em Aracaju, mais próximo de lá e da Linha do Equador, de quem ela não consegue fugir. Tem 22 anos, mas parece ter o dobro de menopausa, sofrendo com frio de 32ºC. Desconfio que ela confunda Celsius e Fahrenheit. Não, nem assim entendo como ela faz doce para entrar no chuveiro sem resistência em pleno dezembro de Salvador. Ela é prima, gente fina, atraente, mas isso é bizarro. “Você tem compromisso mais tarde, não se preocupe, é bom que me refresco mais” seria bem melhor que “você sabe que sou friorenta, mas posso me virar”.
Entendo o cortês pedido folgado para que eu seja gentil, e lá vou cumprir a missão, com breve escala onde a conheci. Não que espere, algo bem improvável, uma nova húngaro-argentina. Nada disso. Costumo ir a uma padaria diferente, mas passo nela apenas pela lembrança da senhorita Korontai, que ajuda a visualizar o à noite com ela. Devo demorar para encontro, mas posso entendê-lo como o atraso que a deixa fora do zona de conforto e mais propensa à sedução.
Antes de entrar na padaria, contudo, vejo uma mulher que parece linda, mas ela está longe e de costas, e eu sem óculos. Ou seja, pode ser um homem, pode ser um anão. Chego mais perto, não parece um anão. Pouco de nada menor que eu, soa ideal. De costas e de perto, permanece bonita. Seria uma forasteira da Pituba com ascendência italiana e metida a novaiorquina? Uma descendente de espanhóis que mora em Ondina mas com humanidade de Brotas? Ou uma indie do Rio Vermelho com o cosmopolitismo bem-humorado e desconfiado do Pelourinho?
Largo divagação. A um metro e meio, astigmatismo já não atrapalha. Depois de quadris, coxas e panturrilha, continuo descida e noto algo estranho. As unhas, as pontas dos dedos e o calcanhar, acomodados em sandália rasteira, estão em sintonia, mas uma sintonia do satanás. Os pés vieram de uma orgia da imundície. Em um palmo quadrado, eles mostram o suficiente para qualquer um prever todo o resto, medonho e demoníaco.
Minha cota de sorte acabou aqui. Melhor é dar meia-volta, ir para padaria habitual, comprar a resistência de Ísis e, mais tarde, vislumbrar o sexo de verdade com Felícia. Antes, todavia, me apego à parte superior dos tornozelos. 95% do que beira o sublime. Penso nele, penso nos 95, e olho de novo para os pés, dou uma nova chance. Mas eles continuam fiéis à primeira impressão. São tão feios que nem o êxtase do resto do corpo, nem a overdose do belo que senti, eu percebo mais.
Desisto, vou é embora.
- Miguel!
Ah, meu Deus. Cadê o botão do mau humor? Cadê a marcha à ré? Cadê o sinal vermelho?
- Não vai falar comigo não, é? – continua.
Não é uma estranha. A dona deles, a dona dos pés falantes, é a húngaro-argentina. Meu coração foi apedrejado.
- Olá!
Falamos o mínimo, chega a minha vez de ser atendido. Vamos para lados opostos, reiteramos compromisso de mais tarde e parto. Duas horas depois, não quero rever aqueles pés. Tenho que acidentar minha prima. Por sofrer com frio que me fazia suar, bem que ela merece. Felícia acredita. Obrigado, Ísis.
Alcanço entrada de apartamento com otimismo de ter evitado uma tragédia. Adendo é que esqueci a miséria da resistência. Sem sair, sem mulher, sem graça e sem resistência, e com todas elas em mente, passo dez minutos de casa até o mercado. Enfim encontro a maldita resistência. Pego a fila. Como sempre acontece quando serenidade não ajuda, ela está grande. Só me resta aguardar, criticar o mundo e olhar a vida alheia. Olhar inclusive uma imagem destoante de ambiente. Os óculos enganam astigmatismo e confirmam que ela tem exatamente minha altura. Olhos anis desbotados, cachos castanhos sutis e bem cuidados, desenho fino não excessivo, corpo com o melhor da Bahia. Talvez uma franco-chilena. Ou ítalo-uruguaia. Quem sabe até uma húngaro-argentina. Agora, não interessa. O importante é que ela está de tênis.

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